Chegamos à meia idade cobertos de cicatrizes, tantas, abertas, purgando sangue e aguadilha, pus de vivências. Envoltos em ligaduras, somos múmias mortas-vivas. Chegamos a meio da vida tão feridos e doridos, tão doentes e frágeis que um simples toque de dedo, certeiro, nos faz tombar. Somos carência e fraqueza. Somos falsos fortes. Somos incertas certezas. Somos um cheio de vazio. Sentimos tanto... e nada!
Vivemos num parco equilíbrio encarcerados na nossa própria solidão, ansiando dela sair, mas temendo-o ao mesmo tempo. A dor é a nossa zona de conforto. O sofrimento o nosso estado normal. E não há quem nos resgate de lá. Não deixamos. Nada nem ninguém nos pode salvar. Nem o amor, porque, simplesmente, já não acreditamos nele.
Tocam carols de Natal, há gente feliz e luzes cintilantes,
E eu deambulo pelo ano que passou num flashback de sentimentos e vivências.
Há árvores coloridas, enfeites e presentes… Ausentes… e tu és um deles.
Um ano de mentiras…
“I wish I had river a could skate away on…”
Um ano de faz de conta...
“ I'm going to quit this crazy scene...”
Um ano de traição.
“Oh oh oh... Oh oh oh... Oh. Oh. Oh!”
Tocam carols de Natal e não neva lá fora,
Mas o meu coração está ferido, gelado e sem fé,
Por tudo o que me fizeste, por tudo o que deixaste de me fazer.
“I wish... I would teach my feet to fly...”
Trezentos e sessenta e cinco dias para decidires o que ainda hoje não decidiste,
Duas ou três coisas que, confessas, ainda não sabes se alguma vez resolverás.
“You made your baby cry”
Não entendo porque me enganaste se as coisas não eram claras para ti,
Porque juraste certezas, se não tinhas nem uma,
E vens agora dizê-lo, depois de tantas vezes o ter perguntado.
“You`re so hard to handle, you`re selfish... and I'm sad”
Não percebes o contrasenso, a tua falta de coerência,
És um cata-vento à deriva, mudas de direcção com os humores,
Hoje é “sim”, amanhã é “não”…
Não! Agora é tarde demais.
“Now I've gone and you lost the best baby that you ever had”
Tocam carols de Natal e não vou dizer que não estou triste,
Mas quebraste a coisa mais importante que havia entre nós,
E dificilmente ou nunca se repara a confiança, uma vez destruída.
“You made your baby say goodbye”
“Oh oh oh... Oh oh oh... Oh. Oh. Oh!”
Só existe uma maneira de suportar a dor da perda: como o viciado que supera o seu vício dia após dia, é viver um dia de cada vez. Nunca pensar no futuro ou extremismos como o "nunca" ou o "sempre", que nos exacerbam a ansiedade e nos conduzem ao pânico. É somar resignadamente um dia e outro e outro até serem muitos e, quando olharmos para trás, percebermos que já estamos noutro patamar e que aquele por quem sofremos já não faz - ou até nunca fez - sentido na nossa vida.
Vivemos numa era assustadora do descartável. Descartamos coisas, pessoas, sentimentos. Não há responsabilidades, não há compromissos, não há empenho. Hoje és, amanhã já foste. Hoje amo-te, amanhã já nem me lembro que exististe. Tudo é efémero, volátil e passageiro. As contrariedades não se superam, eliminam-se, eliminando quem presumivelmente as causou. Não há prazeres adiados, esses dão trabalho, requerem paciência e resiliência. Há o "agora", o "já". Não há o NÓS. Há o EU. Como EU quero, quando EU quero, com quem EU quero. Unilateral. Independentemente da mossa que isso possa causar no(s) outro(s).
Sempre esta angústia. Sempre este aperto no peito e nó no estômago, receando uma desgraça eminente. Uma partida, uma perda, uma morte, a saudade de alguém querido que nunca mais se verá. Protejo-me. Defendo-me. Isolo-me. Não se perde quem não se tem. Mas não nascemos sozinhos, do nada, e somos seres sociais. Existem sempre uma mãe e um pai. Uma família. Uma teia social que se vai rasgando com o tempo. Os seus fios vão-se partindo pelo caminho. Com ele, todos morrem, é o inevitável axioma da vida.
Abraça-me, Meu Amor, embala-me, como se faz aos bebés. Não digas nada, não confesses nada. Sussurra-me apenas esta mentira: “vai correr tudo bem”.
Numa das ruas estreitas da Foz, existe uma mercearia abandonada. Na montra, como uma mercadoria esquecida, repousa um grande e gordo gato siamês. Enroscado sobre si mesmo, ignora os olhares dos transeuntes, entregue a um sono profundo apenas interrompido para seguir a posição dos raios de sol e se ir aninhar uns centímetros ao lado, onde ele incide com maior intensidade.
Todos os dias, passo, olh...o-o e invejo-o. Desafio-o a mirar-me; não quer saber. Ignora-me. Ignora ter de interagir com os outros, ter de ser reconhecido por eles, ter de construir uma carreira profissional. Ignora a necessidade de ser amado, a dor da rejeição, a dificuldade de um relacionamento conjugal.
A ele bastam-lhe uma nesga de sol, uma fêmea na época de acasalamento e um ou outro, ratitos que passem por ali.
"(...) Este ente tem a arrogância típica dos que se acham onipotentes. Criador de tudo que conhecemos, acha que todos devem curvar-se a sua vontade: "Não terás outros deuses diante de mim" é seu lema.
No mito Gnóstico o Demiurgo foi gerado pelo eon Sophia após sua queda. Ao ser gerado, criou o mundo material com o objetivo de governar e aprisionar na matéria as partículas divinas provenientes de sua mãe (Sophia).
Querendo libertar as almas aprisionadas ao mundo material, Sophia rebela-se contra o Demiurgo, e o verdadeiro Deus Inefável envia aos homens o seu filho mais querido, o eon Christós ou Cristo que desce ao mundo material com o objetivo de transmitir a "Gnosis" (conhecimento) às almas para que elas tenham consciência de sua identidade divina e partam para o Pleroma libertando-se do jugo e da escravidão do Demiurgo.
Com o objetivo de impedir que isso ocorra, o Demiurgo cria inúmeras ilusões e prazeres materiais efêmeros para afastar as Almas de sua legítima parcela divina, de modo que estas estejam presas e sejam escravas do mundo material, tendo que sempre a ele retornar (reencarnação). O Demiurgo é o governante desta pequena Esfera de Vida onde reina absoluto."
[in Wikipédia]
Lunata desceu dos sapatos altos, quando chegou a casa. Despiu-se do vestido, enquanto percorria o corredor, deixou cair a máscara ‒ de falsa felicidade ‒ que usara nessa noite. Vinha da festa, daquela que lhe disseram para ir. Mais uma, desde que Demiurgo a deixara. “Procura outros homens, para esqueceres o que já não te quer”, aconselhara-a, uma Sábia. E Lunata procurou. Dia após dia, festa após festa, experimentou conversas e cheiros, bocas e corpos. E os dias somaram-se numa solidão exponenciada por uma busca frustrada, porque ninguém preenche o lugar daqueles que ainda amamos. E nem a música faz a vez de um abraço verdadeiro, nem a dança, a do sexo com amor, nem a excitação da descoberta o conforto de um porto seguro.