Sábado, 10 de Fevereiro de 2007
E foi assim, a fazer lembrar um antigo – famoso – político lusitano que Demiurgo, enganado, tombou violentamente da cadeira onde se encontrava sentado.
Vimo-lo, há pouco, sair da séptica Urgência do Hospital de São João, de braço ao peito e cabeça, qual múmia, envolvida de brancos esparadrapos.Nota: O Bar Aldebarã é um projecto e ideia única e exclusivamente da autoria e responsabilidade dos escritores Manuel Jorge Marmelo e Paulinho Assunção, sobre o qual eu, com o conhecimento e consentimento dos autores, volta e meia, escrevo.
Quarta-feira, 7 de Fevereiro de 2007
Porta Norte do Bar Aldebarã (Fotografia retirada daqui)
Desde ontem que Demiurgo vigia o Bar Aldebarã ancorado, desde o inicio da semana, na Avenida dos Descobrimentos, na Póvoa de Varzim. À noitinha, espiou-lhe o caramanchão e a entrada sul, galgou-lhe o jardim e fez sentinela à porta norte. Não viu luz alguma. Não ouviu qualquer voz. Não sentiu vivalma.
Hoje, palmilhou a marginal sob uma irritante e incontinente chuva miudinha e não reconheceu nos transeuntes Machado de Assis, Cida La Lampe, ou Lucas Baldus.
Voltou à entrada principal do Aldebarã e releu o “Noticiário de uma curta ausência” afixado a maiúsculas nos vidros foscos e trabalhados, art noveau, do estabelecimento.
Magicamente, como naqueles livros em que as letras aparecem e desaparecem sem deixar mácula, notou que os pontos 6, 7 e 8 de tal aviso tinham sido substituídos por outros. Onde antes era aceite a sugestão de Eça de Queirós em mudar o bar para o local onde decorriam as Correntes d`Escrita, estava agora impresso: “A sugestão não foi ainda de todo aceita devido a certos inconvenientes…”.
Demiurgo ajustou o monóculo ao olho esquerdo e mirou, de alto a baixo, o imponente edifício que se lhe afigurava defronte.
– Homessa! Mas que o bar aqui está, está! Ou estarei eu a sonhar?! [SBB]Nota: O Bar Aldebarã é um projecto e ideia única e exclusivamente da autoria e responsabilidade dos escritores Manuel Jorge Marmelo e Paulinho Assunção, sobre o qual eu, com o conhecimento e consentimento dos autores, volta e meia, escrevo.
Segunda-feira, 20 de Fevereiro de 2006
Eu bem me parecia que Erre Manesse nos está a tentar enganar desde o inicio, que não é o contista de Jehru Bestseller, coisa nenhuma, e que aquele bilhete escrito a letras góticas, afixado na porta leste do Aldebarã em meados de Janeiro, não passou de uma nota falsa para nos despistar a todos.
Ainda recordo a face apavorada de Demiurgo a assomar-me à ponta da Montblanc, os seus delírios numa língua antiga, as referencias ao Zarapelho, ao Barzabum, ao Beiçudo… e de como resolvi aquilo muito prontamente, atribuindo-os a febres e enfiando-lhe dois BenUrons e duas aguardentes no bucho. É que às vezes os escritores também cometem erros e, não darem o benefício da dúvida aos seus personagens, é um deles.
Mas agora leio Paulinho Assunção que relata que viu Erre Manesse examinando-se ao espelho, procurando sinais de mutação no seu rosto, buscando vestígios filiformes exagerados e, mesmo sem os ter encontrado, ter voltado para junto dos demais com aquela expressão alucinada, única daqueles que já estiveram na presença do Chifrudo.Nota: O Bar Aldebarã é um projecto e ideia única e exclusivamente da autoria e responsabilidade dos escritores Manuel Jorge Marmelo e Paulinho Assunção, sobre o qual eu, com o conhecimento e consentimento dos autores, volta e meia, divago.
Quinta-feira, 9 de Fevereiro de 2006
Hoje, Demiurgo voltou para ver Lunata.
Como o esposo que regressa ao lar, cobardemente, depois de se ter perdido de amores, temporariamente, por outra donzela, também ele voltou cabisbaixo, carente e acima de tudo − e isto ele jamais confessará a Lunata − tremendamente humilhado. Ou pelo menos, na sua insegurança de “intruso” no Aldebarã, era assim que ele se sentia.
Todos nós sabemos que bar que é bar tem direito, de vez em quando − e sobretudo por parte dos seus clientes de sexo masculino − a ânimos exaltados, tons de voz elevados, picos de adrenalina, descargas exacerbadas de testosterona… mas o que Demiurgo estava longe de imaginar e, pior, de desejar, é que fosse ele próprio o protagonista da primeira briga no Aldebarã.
Reinava a maior gozação, com José Alencar entretido em danças nativas com a recém chegada Iracema, acompanhados ao batuque por James Joyce e seguidos por todos os ilustres presentes que, despojados de suas roupas − chapéus, paletós, coletes, camisas, calças, ceroulas, sapatos e polainas − se entregavam às maravilhas “orgiásticas” do bailado das virgens de tucumã. A certa altura, aproveitando o momento em que Joyce marcava os compassos apenas com meneios, um tal de Homem dos Limões teve a infeliz − e distraída − ideia de sugerir que se atassem quatro balões às pontas do Aldebarã, de forma a que este pudesse levitar e percorrer, assim, os céus do mundo inteiro. Ora, Demiurgo, um homem de ciência, habituado a unir e desunir moléculas e átomos na exacta proporção de uma precisa receita culinária, obcecado pela exactidão, pelo perfeccionismo, pela lógica e pela razão − e também, diga-se de passagem, um pouco solto pelos suspiros de musas, pelas beberragens artesanais e outras mistelas servidas no Aldebarã − ouve aquilo e…, pois, está claro, deixa sair, mais para si do que para os outros, mas, infortunadamente, em voz alta, a seguinte exclamação: − Homessa, mas não era já o Aldebarã um bar-nave??!
Em maldita a hora o fez! Paulinho Assunção, ali ao lado, ouvindo-o e não perdoando, atira-se a ele de dedo em riste, acusando-o, vejam só, de “realista”! E foi vê-los num duelo de esgrima, desembainhando insultos: “Se eu sou realista, vós sois distraído!” argumentava um; “Mas o que é a redundância senão um temor dos realistas?” dizia o outro; “Vós já o havíeis afirmado a treze de Janeiro…” atirava, novamente, Demiurgo; “Só os realistas vêem o perigo na repetidão, o perigo nas contradições, o perigo nos deslizes, o perigo na doce e desgovernada dialética.” parafreseava, Paulinho Assunção. E arremessava ainda, sublinhando, com Iesus Molerus e o seu famoso Tratado de ir e de voltar, citando a cidade, o ano e, calculem, a página!
Formara-se um círculo em volta deles e se aqueles homens desnudados, há minutos atrás, durante a dança, conferiam ao Aldebarã um ar pitoresco, agora, ali, tentando apartar aqueles dois cavalheiros exaltados, de sexos flácidos, barrigas abundantes, canelas tísicas e rabos chupados, eram dignos de um cenário, verdadeiramente, degradante.
De tamanha decadência, só Eça parecia ter consciência e, gargalhando, como era seu hábito, agarrado à sua elegante barriga peluda, teimava em repetir: Este bar é, mesmo, uma anedota!
E foi depois deste vexame, de ego ferido e envergonhado que Demiurgo regressou a casa de Lunata, procurando nos seus braços o conforto de um porto seguro, buscando no seu aconchego a compreensão dos verdadeiros amigos.
Mas Lunata não estava. E, assustaram-no, no chão, os restos dos seus cabelos de fada. [SBB]Nota: O Bar Aldebarã é um projecto e ideia única e exclusivamente da autoria e responsabilidade dos escritores Manuel Jorge Marmelo e Paulinho Assunção, sobre o qual eu, com o conhecimento e consentimento dos autores, volta e meia, divago.
Quarta-feira, 18 de Janeiro de 2006
Demiurgo regressou ao Aldebarã nessa noite.
Deparou-se à entrada com um Camões elegante, bem vestido, de collants acetinados, branco-pérola, de fazer inveja à Donzela dos Muitos Prazeres, e, no olho, uma pala preta, brilhante, de onde sobressaía, numa pedraria fina de diamantes, o logótipo da casa Dior.
Perdia-se com o porteiro do estabelecimento, um tipo alto, cavalão, todo ele chumaços e volumetria, numa discussão acesa sobre o amor que garantia ser fogo que arde sem se ver, ferida que dói e não se sente, enquanto o outro, de ar céptico e mente muito menos elaborada, parecia ter escrito no olhar escuro de toiro Ribatejano uma forma bem mais simples e brejeira de o descrever.
Thomas Mann também lá estava. Numa das muitas salas do Aldebarã montara a sua Montanha Mágica que deliciava as memórias de infância dos ilustres. Era vê-los fazerem fila para jogar! A brincadeira consistia numa corrida em que dois concorrentes, depois de terem tomado uma mágica poção de que só Mann conhecia o segredo e que os fazia diminuir a um tamanho minúsculo, tinham de percorrer um sinuoso caminho até ao topo da Montanha, passando por túneis, parando em estações, dando passagem a rebanhos de ovelhas, subindo caminhos íngremes… entre muitos outros obstáculos. Ganhava quem primeiro chegasse lá cima, ao belíssimo sanatório, se metesse mais rapidamente na cama e enfiasse primeiro o medidor de febres na boca.
A confusão instalou-se quando todos queriam ser os primeiros a jogar. Ouve quem fizesse birras, histerias, choradeiras. Eça de Queirós amuou. Pegou-se ao estalo com Proust que o acabou por vencer. E Eça foi aninhar-se no chão, a um canto, emburrado, de braços cruzados sobre o peito e ar zangado.
Alguém teve a ideia de se implementar um sistema de senhas que garantisse a ordem naquele tumulto. Mas não resultou, pois todos reclamavam, também, o lugar pioneiro na recolha da dita rifa.
Fernando Pessoa negou-se a tomar o antídoto da poção, para regressar ao seu tamanho normal. Queria ser piquinino, dizia convicto, numa voz infantil.
Já a noite ia alta quando Demiurgo deixou o Aldebarã. Pessoa dormia a sono solto ao colo de Milena que se deliciara a dar-lhe o peito, assegurando-lhe, depois, as palmadinhas nas costas para lhe garantir o arroto e o mimara, ternamente, até adormecer, com belas canções de embalar. [SBB]
Nota: O Bar Aldebarã é um projecto e ideia única e exclusivamente da autoria e responsabilidade dos escritores Manuel Jorge Marmelo e Paulinho Assunção, sobre o qual eu, com o conhecimento e consentimento dos autores, volta e meia, divago.
Segunda-feira, 16 de Janeiro de 2006
A dúvida
Afinal, Demiurgo não sabia se sonhara, ou se chegara, na realidade, a entrar no Aldebarã.
Acordou confuso, de cabeça pesada, tonto, na boca um travo amargo que poderia, tanto, ser da mistura dos taninos dos Suspiros de Musa, como dos comprimidos que tomara de véspera, ao deitar-se, acompanhados de dois generosos copos de água-ardente que se encarregaram de o tranquilizar durante o sono.
Recordava uns olhos vítreos, rubros, demoníacos que poderiam, perfeitamente, ter sido os seus, tais foram as violentas febres que o assomaram nessa noite, privando-o de sentidos e razão. Lembrava um M. que ora o olhava, ora dormia, aninhado, sob uma mesa, mas essa, parecia-lhe semelhante às da confeitaria da baixa da cidade onde, por vezes, M. cochilava, enquanto esperava por Amina ou lá como ela se chamava.
Demiurgo não sabia. Em todo o caso, estava decidido, passaria novamente pelo Aldebarã nessa noite. [SBB]
Com ou sem Demiurgo, a história continua, naquele que é já o meu preferido bar da blogosfera.
Nota: Para que não haja azo a confusões, fiquem os leitores sabendo que o ilustríssimo Bar Aldebarã é um projecto e ideia única e exclusivamente da autoria e responsabilidade dos escritores Manuel Jorge Marmelo e Paulinho Assunção, sobre o qual eu, com o conhecimento e consentimento dos autores, volta e meia, divago.