Já há alguns meses vive na minha rua um casal dentro de um carro. Vivem na Foz dentro de um carro. São, talvez, ligeiramente mais novos do que eu e têm bom aspecto. Lembro-me que, quando me apercebi, me assaltou de imediato a ideia de pobreza envergonhada. Imagino-os a dormirem ali e de manhã a irem tomar banho a um qualquer balneário e a continuarem o dia num emprego precário ou à procura dele. Durante o dia nunca estão. Nem eles, nem o carro.
Não sei como ajudar, se os devo, sequer, abordar, se querem a minha ajuda. Sei que, a serem verdade as minhas suspeitas, não quero um país assim. Não quero um país onde as pessoas perdem as casas e a esperança.
Por outro lado, o desenvolvimento e a modernização das cidades e da sociedade, com todas as suas vantagens, agravam ainda mais a situação em tempo de crise: a desestruturação dos laços familiares faz com que a tia x já não se sinta responsável pelo sobrinho y; que o sobrinho y já não vá valer ao irmão z.
Hoje, quando passei junto ao carro, ela dormia encostada a ele com uma mão abandonada perto dos seus cabelos, em tom de carícia. “Felizmente, têm-se um ao outro”, pensei. Cobria-os a manta do costume: um xadrez britânico áspero bege e preto tapa-lhes a desgraça.