Cenário: Ao entrar no quarto do Simão, vejo o Risquinhas − o Simão costuma dormir com um tigre chamado Risquinhas − a meio caminho entre a cama e o parapeito da janela, com uma pata na borda daquela e o focinho neste, e interrogo:
− O que tem o Risquinhas? Vai-se suicidar? Atirar-se da janela? Voar do quarto andar e esborrachar-se lá em baixo? O Simão olha atarantado para ele. Eu, continuo, dramática: − Está zangado com a vida? É por causa do desemprego? Da inflação? Da interrupção voluntária da gravidez? O Simão deixa rapidamente a brincadeira em que se encontra embrenhado e apressa-se − pelo sim, pelo não − a ir deitar confortavelmente o Risquinhas bem no meio da cama, com a cabeça numa almofada que carinhosamente acomoda para ele. Depois ri-se e garante: − Não. Está só a dormir.
Moral da História (bolas, que chata! pá!) a falar: Que vergonha, uma senhora tão crescida ter brincadeiras tão estúpidas e tão pouco pedagógicas, que até podem induzir a comportamentos perigosos, com uma criança pequenina! Shame on you! És pior que o pai do Calvin! Depois desta, o castigo: cinco mil chibatadas!
As vezes ainda choro. Ainda olho para trás. Ainda sinto. Esse insustentável peso do projecto falhado. Essa irreparável dor do investimento perdido. Esse irrecuperável tempo do esforço em vão. Mas não será isso que me deterá. O caminho, Meu Amor, faz-se caminhando. Um passo depois do outro. Sempre. Para a frente.
Parece ser consenso dos defensores do “sim” e do “não” que as mulheres que recorrem ao aborto vivenciam – carregando-a durante toda a vida – uma situação extremamente traumatizante e não desejada. Devem, então, as mulheres em risco de a ele recorrerem serem aconselhadas, informadas e acompanhadas no sentido de poderem ser criadas condições para este poder vir a ser evitado. Ora, parece-me que em nada, absolutamente em nada, uma lei que não as condene, que não as culpabilize ainda mais afectará negativamente este processo. Antes pelo contrário: ajudá-las-á a recorrer mais cedo, sem medo e sem vergonha, às entidades competentes para tal. Por outras palavras, o que defende o “sim”, não exclui o que defende o “não”, se todos se empenharem na implementação de um sistema de aconselhamento e acompanhamento a estas mulheres. Também parece consenso dos defensores do “não” e do “sim” que o mundo não é perfeito e que haverá SEMPRE quem recorra ao aborto. Uma lei que permita a estas mulheres, mais uma vez sem medo e sem vergonha, recorrerem a cuidados de saúde dignos, evitará mortes. Se não a do feto e a da mãe – como seria o ideal – pelo menos a da mãe. E, quem sabe, até a deste, se ao passarem por esse aconselhamento e acompanhamento não acabem demovidas do seu propósito. Por tudo isto: "Sim".
Hoje fizemos amor, partilhamos cigarros e abandonamo-nos em conversas despreocupadas, no conforto do corpo um do outro. Hoje deslizamos no branco imaculado dos lençóis do hotel de cinco estrelas, pedimos ceias nocturnas, ouvimos notícias a que não prestamos atenção; Debicamos amendoins, saboreamos champanhe e vinho tinto, adormecemos e voltamos a acordar; Vimos partes de filmes, pedaços de talk-shows, flashes de informação, outras vidas, em zapping. Hoje ouvimos a cidade despertar; a água, nos canos, do acordar dos "vizinhos"; o céu clarear, lá longe, no recorte imenso da nossa janela. Hoje tomamos o pequeno-almoço no quarto: ovos mexidos e bacon, croissants, compotas, cereais e sumos; Lemos, descontraídos, os jornais, no canapé da suite, tocando-nos hipnoticamente, deliciosamente, ao de leve. Hoje voltamos a abraçar-nos com força, a desapertar os botões de punho e o soutien, a respirar o mesmo ar, a mover-nos em sintonia. Hoje ouvi-te falar como já não tinha memória, enrosquei-me no teu ombro como já não imaginava e adormeci feliz como já não achava possível. E hoje, Meu Amor, já foi há tanto tempo!…
Dez dias depois de ter deixado de ser visto pela última vez e precisamente um quarto de hora depois dela ter saído, Düss El Dwarf, apareceu. Vinha cabisbaixo, pouco falador, muito metido com os seus pensamentos. Eu podia ter-lhe perguntado por onde andou, queixar-me do incómodo de ter tido a casa literalmente invadida por uma gnoma grávida que não conheço de parte nenhuma, inquiri-lo das suas responsabilidades no estado de tal criatura. Podia lembrar-lhe que não era fugindo que se resolviam os problemas, que os homens (e também os gnomos com mais de três anos**) se querem adultos, responsáveis e não ratos, medrosos, e que o egoísmo tem o seu limite exactamente quando interfere com a vida de terceiros. Podia ter feito tudo isto, mas não o fiz. Pelo contrário, dirigi-me ao frigorífico, retirei de lá uma garrafa enorme de cerveja que despejei, equitativamente, em duas canecas. Estendi uma a Düss El Dwarf e outra atirei de um trago, goela abaixo. Depois, arrotei. Estridentemente, solidariamente com o meu amigo.
Depois da performance − estreia dela nas artes dramáticas − o marido, ufano, gaba-se aos amigos e família que ela, a sua mulher, foi capaz de chorar maravilhosamente bem em palco. O que ele não sabe, nem lhe interessa, é porquê.
Ainda me lembro do castor, ou melhor, da pele dele, enorme, branca e beije, a parecer a do monstro do “Never Ending Story”, escalpada, boiando sobre as águas escuras de uma estranha piscina da Granja que mais parecia um assustador parque temático. Ainda me lembro dele gemendo. Gemendo ruídos de castor, ou seriam gritos agonizantes de dor?…
Não é que agora pegou moda − já me aconteceu no Jumbo, já me aconteceu no Toys` u`Us − após uma compra, pedirem-nos, assim, como se não quer a coisa, como se até nem fosse muito importante, nem muita maçada para nós, o número do código postal?! E o povinho embarca todo naquilo, inocente, e, mesmo os que estranham acabam por ceder, coitada da menina da caixa que até é muito simpática e aquilo é só para fins estatísticos (diz ela, muito vaga, que foi o que lhe disseram a ela), e nem tenho que dar o nome nem nada. Ora, o que o povinho não sabe (e o que sabe, parece não se querer lembrar) é que por trás da simpática menina, coitada, estão grupos económicos poderosíssimos a utilizarem para estudos de mercados, a custo zero, dados importantes do consumidor. Essas estatísticas de que as meninas falam e dizem sem importância, dão, por exemplo, informações ao grupo Auchan de onde vêm os seus consumidores, possibilitando-os, vejam só!, projectar a abertura de uma nova área comercial mesmo à portinha de casa dos seus clientes. E tudo isto, friso, a custo zero! Nada de pagar a empresas especializadas, nada de pagar a pessoal para inquéritos, nada de pagar ao consumidor pela preciosa informação fornecida. Quase me atrevo a dizer que nem extra, por isto, pagam à menina da caixa. E o pior é que hoje nos estão a pedir o código postal, amanhã o nome e o número de telefone, é que isto da habituação é tramado e quem dá uma coisa, dá outra num instante, pois o que quer é despachar-se depressa, pagar e pôr-se a andar dali, que o marido está à espera no carro e os putos insuportáveis, às turras. Não sendo jurista, pergunto-me, até que ponto será legal usarem (e abusarem) assim da ingenuidade, desinformação e boa fé dos consumidores?! E se legal for, olhem, garanto-vos, moral não é certamente!