Terça-feira, 31 de Outubro de 2006
Ainda junto do estábulo de Millstreet, um velho nojento, de feições flácidas e bigode asqueroso, dirige-se a ele com uma intimidade repugnante, a mesma com que deve falar com a fêmea que, todos os dias, lhe limpa o chão da casa, lhe põe a comida no prato e a quem ele furtivamente apalpa o rabo, enquanto executa as tarefas:
− Anda cá, meu safado, há bocado fugiste-me! Anda cá!
E tenta acariciar os flancos de Millstreet que se esquiva, aflito, como provavelmente faz a "esposa", não vá ele, também, lembrar-se de a montar.
E puxando-lhe o focinho, ameaça lascivamente, fitando-o nos olhos:
− Seu safado! Para a próxima dou-te um beijo na boca! Seu safado! − E repete, enquanto se afasta com outros amigos caquécticos: − Um beijo na boca, ouviste?!
Eu e um rapaz com um miúdo ao colo presenciamos tudo aquilo em silêncio. Depois, volto-me para Millstreet e solidária, exclamo, em alto e bom som, indiferente a quem quer que possa ouvir:
− Irra, amigo, do que tu te safaste!
© Foto e texto: Sofia Bragança Buchholz
" A razão é a inteligência em acção;
a imaginação é a inteligência em erecção"
Segunda-feira, 30 de Outubro de 2006
Na foto: Gisele Bündchen
Personagens:
• Eu
• Millstreet
• Senhora gorda
• Miúdo anafado
Cena:
Uma senhora gorda, com um miúdo anafado, de cores rosadas, a fazerem lembrar dois dos três porquinhos, aproximam-se do estábulo de Millstreet no Parque da Cidade.
Entusiasmada, a senhora exclama com sotaque acentuado do Porto:
Acção:
− Ai, que lindo cabalinho! Já biste, Paulinho, que bonito, cabalinho?!
O miúdo anafado, desconfiado, aproxima-se a medo de Millstreet, que o fita com ar de desdém. A mãe obesa insiste:
− Bá, Paulinho, põe-te ao pé dele para eu tirar uma fotografia. Que lindo! Ai, que lindo, como se chama o cabalinho?
O miúdo, receoso, vai-se chegando uns milímetros para Millstreet que, por sua vez, com repulsa, se afasta uns bons centímetros.
Eu informo, com indiferença:
− Millstreet.
Ela, babosa, de sorriso de orelha a orelha, inquire novamente:
− A sinhora é a treinadora, é?
Eu, lacónica, respondo, vendo com um certo gozo o sorriso dela dissipar-se:
− Não. Somos amigos.
Domingo, 29 de Outubro de 2006
© Sofia Bragança Buchholz
E foi assim, nesta condição humilhante, que foi, hoje, Lunata, encontrar Paquito, no Parque.
Cruzando-se, ao longe, os seus olhares, tacitamente ela desviou o dela, discretamente, fingindo não o ver, para o privar da vergonha.
Ao que parece, o vil, o danado, o malfeitor Pausânias Girassol não se contentou, apenas, com o desdém do entusiasmo alheio, com o desprezo da felicidade geral e do estado de graça que reinava pelo Aldebarã. E tinham propósito as gargalhadas fininhas, estridentes, de Mefistófeles que incomodaram hoje, a meio da tarde, os habitués do nosso bar. Propósito mau, ruim, mesquinho, diga-se. Quem o descobriu foi Demiurgo que, devido ao treino intensivo com namoradas que, chegado aos quarenta, parece querer coleccionar, se tornou especialista. Notou-lhes, aos lábios de Paulinho Assunção, de Manuel Jorge Marmelo e de Lucas Baldus, após o ósculo, um inchaço invulgar, uma vermelhidão arroxeada, uma secura, quase imperceptível mas inconfundível para um perito na arte de beijar. Analisou-os também em Machado de Assis, em Kafka, em Gregório de Matos e concluiu, douto na matéria, que não eram sinais de ardor ou desejo, o que denunciavam aqueles beiços. Intuitivo, correu a investigar o necessaire onde a misteriosa donzela do véu guardava as pinturas com que, beijo após beijo, retocava os carnudos e apetecíveis lábios. E encontrou. No vermelho e sedutor baton com que ela se alindava, vestígios − muito ténues, mas ainda assim maléficos − de Dieffenbachia picta Schott ou, ironia das ironias, a vulgarmente chamada, planta Comigo-ninguém-pode. [SBB]
Eles estão de volta com o Bar Aldebarã e eu, como já ia sendo hábito, não resisti a meter o bedelho, com o texto acima.
Nota: O Bar Aldebarã é um projecto e ideia única e exclusivamente da autoria e responsabilidade dos escritores Manuel Jorge Marmelo e Paulinho Assunção, sobre o qual eu, com o conhecimento e consentimento dos autores, volta e meia, divago.
Sexta-feira, 27 de Outubro de 2006
Quinta-feira, 26 de Outubro de 2006
Amesterdão, 26 de Outubro de 2006
Papo-Seco, pá, como estás, meu bacano?
Obrigado por me teres enviado a Maria das anjas. Sim, das anjas e não dos anjos que esses ficam a chuchar no dedo que ela é minha! (eh eh eh)
A Eterna, sempre com a mania da poesia e das metáforas, queria chamar-lhe Uriel. Em homenagem ao arcanjo do arrependimento, ou lá o que é. Eu sugeri Ariel ou Nata do Céu. Ela zangou-se. Chamou-me porco, tarado que só penso em sexo e que isto não é nenhum lupanar. Eu ainda argumentei que branco mais branco não há e que a pequena é um doce de rapariga. Mas qual quê?! Atirou-me, que as anjas são um símbolo da perfeição, que são arte, que representam o belo e que não são nenhumas prostitutas! Epá, Papo-Seco, injusta a tipa, que eu até concordo com tudo o que disse, de tão perfeitinhas que elas são. Ou com quase tudo.
Mas pronto, agora, a anja já está em casa e é o que interessa.
E por falar nelas, isto aqui em Amesterdão é um paraíso! Tens de cá vir, Papo-Seco. Tira o próximo fim-de-semana e anima-te que já falta pouco, porque depois de Amanhã é Sábado…
Um abraço
Düss El Dwarf Foto: aqui
Quarta-feira, 25 de Outubro de 2006
Hoje, não me apetece ser benevolente ou poética, apetece-me ser cruel. Como tu.
Apetece-me chamar as coisas pelos nomes, sem encobrimentos ou disfarces, sem atenuantes ou desculpas. És uma fraude! Falhaste em todas as tuas promessas. Lograste-me em todas as expectativas. Prometeste mundos e fundos, insinuaste grandezas e nobres feitos, lealdade e bom coração, não cumpriste nem uma.
Antes, porém, aproveitaste-te do meu amor, das minhas emoções, e da minha [boa] fé em ti para me manipulares a teu bel-prazer e me extorquires os sentimentos até à medula, ao ponto de querer morrer por ti, tão sem nada me quedei, de tão sem sentido ter ficado a minha vida.
Não sei, não entendo, Meu Amor, porque te lamento, ainda [assim], a partida.
Terça-feira, 24 de Outubro de 2006
Na foto: Ana Beatriz Barros
Pedimos desculpa pelo tornado publicitário que afectou temporariamente este blog.
A emissão segue − normalmente − dentro de momentos. Com anjas, como redenção, está claro!
Segunda-feira, 23 de Outubro de 2006
Sabes, Demiurgo,
Hoje estive no Parque. Resolvi, assim, de repente, descer à Terra e visitar aqueles de quem a minha [nova] vida me apartou.
Está tudo muito mudado, ou assim me pareceu. Refiro-me à paisagem. As chuvas fizeram crescer a erva e os caminhos são agora mais densos, menos trilhados, requerendo largos passos, quase saltos, para os percorrer.
Quando me viram, os patos, vieram receber-me a correr, quack, quack, quack, balançando desconchavadamente o peso do corpo numa e noutra pata, alternadamente, naquela sua tão curiosa e cómica forma de andar. Fizeram-me uma festa! Uns disseram que estava mais magra. Outros que estava mais gorda. Outros que estava igual. Outros, ainda, que não estava nada igual, mas não sabiam definir, e falavam todos ao mesmo tempo, entusiasmados, eufóricos, atropelando as vozes uns dos outros, pegando-se, na divergência de opinião, reclamando a minha atenção, quack, quack quack, que os patos são assim, como sabes, têm tanto de amoroso como de caturrice.
O Pato Preto e a Senhora Pata também lá estavam, mais comedidos nos comportamentos e exclamações. Agradeceram muito a lembrança que lhes levei, um pão comprado de improviso numa confeitaria, ali, da zona, enquanto os outros, coitados, a gabavam, a namoravam, a cobiçavam, de água no bico que até tive pena de não ter levado para eles também.
...
No prado, montado por um cavaleiro que desconheço, vi Millstreet, cavalgando. Acenei-lhe ao longe e fui ver Paquito, já recolhido na cavalariça. Recebeu-me com um sorriso enorme, um relinchar de contente, as dentolas todas à vista, gigantes, o lábio superior arrebitado, retorcido! E que bonito que estava − parece que por lá passou o cabeleireiro − com a crina toda entrançada, em trancinhas pequeninas, muitas, a fazer lembrar um penteado africano!
Ibéria, a égua, também aparara as repas, certinhas, como as minhas. Ainda nos rimos com isso e nos pusemos a comparar: iguaizinhas que estamos! Não fossem as dela serem brancas como o marfim e as minhas − naquele dia − negras como o ébano, ainda diriam que éramos irmãs. E, com a ideia, desatamos a gargalhar que é assim que se passam os dias, felizes, descontraídos, entre amigos.
Saí, já o sol caíra no mar e todos seguido as suas vidas: o Pato Preto, Senhora Pata, Jovem Cisne e todos os patos dormiam aninhados, na erva, ao pé dos lagos; a Dona Gatita, vira-a entrar para casa do dono, na urbanização rural; Millstreet, Ibéria e Paco refastelavam-se, agora, com um repasto de feno nos seus respectivos estábulos.
E, sabes, Demiurgo, entristeceu-me, confesso-te, deu-me um sentimento miudinho, solitário e de abandono − tontices de menina, eu sei! − constatar que apesar de toda amizade, de todo o carinho e afecto, a vida deles continua e faz sentido sem mim.
E, como a deles, a tua, Demiurgo.
Um beijo daquela que sempre te quererá,
Lunata
© Sofia Bragança Buchholz, 2006. Reprodução interdita.
Domingo, 22 de Outubro de 2006
© Foto: REUTERS/ Vincent West (2005)
Sabes, [Meu Amor,] hoje procurei-te, na companhia de outro homem, para me enganar da tua ausência. Substituí-te, no sorriso, no toque, no perfume, para fintar a tua falta. Busquei-te noutro olhar, noutra voz, noutra pele, para lograr a tua perda. Entreguei-me num beijo apaixonado, para iludir a inexistência do teu amor por mim e regressei a casa mais triste, mais perdida, mais só, arrasada, por te perceber único.
Sábado, 21 de Outubro de 2006
Sexta-feira, 20 de Outubro de 2006
Hoje, calhou-me, à última da hora, ter de ir buscar o Simão à escola de música.
Ele, como não sabia, ao avistar-me correu para mim, feliz, mas depois hesitou, deu dois passos atrás, para ir buscar um miúdo loirinho, fazendo questão de me apresentar ao amigo. Só que em vez de dizer, como é habitual, “Esta é a minha tia”, encheu-se de entusiasmo e, quase como quem assegura que eu sou uma das deles, inoportunamente exclamou: “Olha, o que a minha tia trás nos dentes!”, fazendo referência, é claro, ao aparelho que desde segunda-feira, me “abrilhanta” também, para mal dos meus pecados, os dentes da frente.